A primeira visita ao Brasil do representante para a América do Sul do
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh),
Amerigo Incalcaterra, desde dezembro de 2015 coincidiu com uma das mais
grave crises da história da segurança pública no país. Para o italiano,
as cenas de presos matando uns aos outros e assumindo o controle de
presídios demonstram o fracasso da atual política criminal, que tenta
prevenir e punir quase todo tipo de infração penal com o encarceramento.
O resultado, segundo ele, é a alta população carcerária no Brasil, uma
das maiores do mundo, e o desafio do poder do Estado pelas organizações
criminosas.
Incalcaterra, no entanto, não considera a situação
atual uma surpresa e lembra que há tempos a ONU recomenda mudanças
legais e mais investimentos para que o país possa melhorar as condições
das cadeias e enfrentar a criminalidade, com o fornecimento de condições
de ressocialização aos presos. Para o representante da ONU, problemas
como a superlotação dos presídios não serão resolvidos sem mudanças
efetivas na política criminal.
Após passar três dias se reunindo
com representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, do
Ministério Público e da sociedade civil organizada, o representante das
Nações Unidas manifestou à Agência Brasil a preocupação com propostas de leis que, segundo ele, não levam em conta os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Agência Brasil – Há pouco mais de um ano o senhor não vinha ao Brasil. Durante seus dias no país, de 7 a 10 de fevereiro, algo chamou sua atenção em termos de mudanças em relação aos direitos humanos?
Incalcaterra –
Encontramo-nos diante de situações complexas, como o tema carcerário. É
um horror o que ocorreu em estabelecimentos penais do Amazonas, de
Roraima e do Rio Grande do Norte. Mas não é novidade, nem surpresa. [As
causas de] Tudo o que aconteceu e está acontecendo vem sendo denunciado
há tempos. Em 2015, membros do Subcomitê das Nações Unidas para a
Prevenção da Tortura estiveram no país e identificaram em seus
relatórios públicos todas as dificuldades enfrentadas no sistema
carcerário. É uma situação muito grave, lamentável e preocupante.
Principalmente porque evidenciou que as autoridades não tinham o
controle do interior dos estabelecimentos carcerários, o que coloca em
xeque qualquer projeto de ressocialização dos presos. Sem o controle do
que ocorre no interior das prisões, é muito difícil implementar qualquer
programa de trabalho ou pedagógico.
ABr – Algo mais chamou sua atenção?
Incalcaterra – Também nos preocupa que o Poder Legislativo e, às vezes, o Poder Executivo, que tem enviado propostas de leis ao Congresso Nacional, deixem de considerar em seus projetos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro. Muitos temas importantes que estão sendo discutidos no Congresso revelam um certo desconhecimento, como se acordos já ratificados pelo país simplesmente não existissem – embora, por força desses mesmos acordos internacionais, tenham passado a integrar a própria legislação brasileira.
É o caso, por exemplo,
do debate em torno da reforma da Previdência Social, que impacta milhões
de brasileiros. Uma discussão que deve levar em conta também as normas
internacionais e os marcos legais da Organização Internacional do
Trabalho. Mesmo caso da já aprovada Emenda Constitucional 55 [a chamada
Emenda do Teto dos Gastos, que limita os gastos públicos pelos próximos
20 anos e foi aprovada em dezembro de 2016], que pode acarretar sérios
riscos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais. O debate
de temas como direitos sexuais reprodutivos; demarcações de povos
tradicionais [quilombolas, índios, ribeirinhos, etc], entre outros, nos
preocupa por esse mesmo motivo: não considerar os marcos legais
internacionais a que o Brasil se comprometeu a observar.
ABr –
Especificamente em relação aos direitos humanos, isso não pode ser um
reflexo do momento, já que uma parcela significativa da população tem
uma visão negativa sobre o assunto, associando a promoção dos direitos
humanos à defesa de criminosos e da impunidade?
Incalcaterra – Mas os países não só têm que ser coerentes com os compromissos internacionais que assumem como precisam empenhar esforços para que a população entenda a envergadura, a importância desses pactos. É responsabilidade das autoridades explicar isso e a real importância dos direitos humanos para toda a população.
Por exemplo: em 2015 foram estabelecidos os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [https://nacoesunidas.org/pos2015/],
uma grande agenda de direitos humanos. Diversos países acordaram que
todas as ações dos Estados nacionais devem estar voltadas à melhoria das
condições de vida das pessoas. Os países assumiram a obrigação de
implementar as ações necessárias para atingir as 17 metas estabelecidas
em conjunto e informar aos demais o que vem fazendo ao longo do tempo
para atingir esses objetivos. Se uma medida qualquer, como o teto dos
gastos, coloca em risco esse compromisso, evidentemente que há algo em
que se pensar. O Brasil faz parte de um mundo cada vez mais globalizado,
no qual o que acontece com um país afeta os demais.
ABr –
Voltando à crise no sistema penitenciário, o que é preciso fazer para
combater a ação das organizações criminosas, reduzir a população
carcerária e possibilitar a ressocialização a mais pessoas que estejam
cumprido pena.
Incalcaterra – Já há plena consciência quanto aos problemas. Falta implementar de forma articulada os mecanismos, as soluções já discutidas. Consideramos fundamental rever a política criminal. O Brasil poderá vir a ter os melhores e maiores presídios do mundo, mas se seguir prendendo mais e mais gente sem ressocializá-la, não haverá saída. A situação carcerária é gravíssima, mas não pode ser considerada isoladamente, pois é um problema que não será resolvido sem mudanças efetivas e simultâneas na política criminal.
ABr – Que tipo de mudanças?
Incalcaterra – Sem uma reforma dos marcos legais, seguiremos alimentando os presídios. Os cárceres superlotados não serão esvaziados sem a aplicação integral da Lei de Execução Penal. Construir mais e mais presídios também não é a solução. Com cerca de 622 mil presos [dados do Departamento Penitenciário Nacional], o Brasil já era, em 2014, o país com a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Mais da metade dessa população carcerária tem menos de 29 anos; é composta por afrodescendentes e menos de 10% concluiu o ensino médio.
A maior
parte dos encarcerados está presa por porte de pequenas quantidades de
drogas ou crimes contra o patrimônio. Poucas dessas pessoas são
reincorporadas à sociedade após cumprirem suas penas. As organizações
criminosas se aproveitam dessas pessoas. Diante desses dados, é preciso
refletir onde estamos falhando e se o caminho a seguir é este, com o
aumento das taxas de encarceramento, ou se há alternativas.
ABr –
Várias medidas apontadas como soluções para aspectos do problema
carcerário parecem ser consensuais, como a importância de o Estado
oferecer chances de o preso trabalhar e estudar. A questão, segundo
sucessivos governos, é como implementar essas medidas, principalmente em
um momento de crise financeira como o atual, onde os recursos parecem
ser insuficientes. Como o senhor analisa essa questão?
Incalcaterra – Não creio que a implementação de algumas das medidas já discutidas esbarre na falta de recursos. O Fundo Nacional Penitenciário
[Funpen, criado em 1994], deve destinar recursos para os estados
implementarem melhorias no sistema penitenciário e é um exemplo de
coisas positivas feitas nos últimos anos. O Conselho Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura, por sua vez, indicou que a liberação
desses recursos deve estar condicionada à criação, pelos estados, de
conselhos e mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura, o que
facilitaria o monitoramento da situação dos presídios. A aplicação da
Lei de Execução Penal implica que os juízes se aproximem dos cárceres,
entrevistem os presos. Oxalá o Congresso Nacional aprove a Lei de
Audiência de Custódia. Há diversas iniciativas em debate ou já aprovadas
que só precisam ser implementadas adequadamente.
ABr –
O Tribunal Penal Internacional vem discutindo a inclusão dos grandes
crimes ambientais entre os crimes contra a humanidade. Pelo que já se
sabe, a Corte pretende passar a julgar empresas e dirigentes políticos
responsáveis por catástrofes ambientais. Se implementada, o que essa
medida representará em termos de promoção e preservação de um meio
ambiente equilibrado para a atual e as futuras gerações? Quais os
possíveis impactos disso para o Brasil?
Incalcaterra –
Esperamos que a Corte adote essa linha. Os países estão obrigados a
mudar radicalmente a forma como atuam em relação ao meio ambiente. Sem
isso, os efeitos das mudanças climáticas serão dramáticos. E cabe aos
estados nacionais monitorar e supervisionar a atividade industrial capaz
de produzir desastres naturais. A ONU também já implementou um conjunto
de princípios a serem observados pelas empresas, que devem respeitar os
direitos humanos em seu sentido mais amplo. Cabe aos executivos
analisar quando uma operação comercial pode causar danos e que medidas
de mitigação e de reparação devem ser aplicadas.
Edição: Wellton Máximo
Alex Rodrigues – Repórter da Agência Brasil
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